Blaidd e a friendzone em Elden Ring

Esse texto tem spoilers do jogo Elden Ring, especialmente da questline da Bruxa Ranni e de sua relação com Blaidd, o meio-lobo. Se você ainda não jogou, está esperando o que para ir sofrer nessa maravilha?

Mas não se preocupe, você pode ler mesmo sem ter jogado. Essa é uma análise de uma pequena parte da narrativa do mundo incrível criado pela FromSoftware pra você poder apreciar entre cada “VOCÊ MORREU” que inevitavelmente vai aparecer em sua tela caso decida jogar.

Também é um texto que fala sobre a maneira como enxergamos relacionamentos e alguns problemas que podemos encontrar neles e sobre o porquê de vejo Blaidd como alguém que está na friendzone e é meio incel.

Preparados? Respira fundo e continue lendo!

O que é a friendzone?

A friendzone, de maneira simples, é uma situação que grande parte dos homens já sentiu, especialmente durante a adolescência. Não é uma experiência exclusivamente masculina, mas é mais comum com homens. Mais a frente no texto vou falar sobre um possível motivo disso, mas, por enquanto, uma definição descritiva basta:

A friendzone é a área figurativa de um relacionamento em que uma das partes tem interesse romântico ou sexual na outra que, por sua vez, tem interesse em apenas uma amizade platônica.

Extremamente comum durante a adolescência, esse tipo de relacionamento tende a ser composto por um garoto apaixonado por sua amiga que não tem o mesmo interesse, mas mantém-se próxima por ainda querer a amizade.

Se você já se sentiu na friendzone, deve lembrar de algumas coisas como concordar que só quer a amizade, dizer que não tem interesse em nada mais (apesar de ter), concordar em ser apenas amigos, ou ouvir a frase “Ele é como um irmão pra mim” ou qualquer coisa parecida.

A friendzone é real?

Nos últimos anos, a noção de que a friendzone não é real se tornou mais popular e comum. Eu concordo. Entretanto, o sentimento de estar na friendzone é real.

Não é apenas porque alguém sente algo, especialmente em uma situação que envolve ser “colocado” em um lugar por outras pessoas, que esse sentimento se baseia em uma realidade. A friendzone é uma questão de perspectiva.

Da perspectiva de quem está dentro dela

Eu digo que é uma experiência mais comum em adolescentes porque essa é uma fase da vida em que nós temos menos certeza de o que estamos sentindo, temos mais receio de nos abrirmos com os outros e um grande medo de nos sentirmos e parecermos derrotados em nossas tentativas. Crescer envolve derrotas – e as primeiras podem ser assustadoras.

Um dos principais causadores da friendzone não é a pessoa que “coloca” a outra nela, mas o receio de revelar seus sentimentos e ser rejeitado, e o receio de ter que lidar com essa possibilidade de derrota. Por isso é tão comum a pessoa ter um desejo de relacionamento romântico, mas aceitar ficar por perto como apenas um amigo, talvez na esperança de que o alvo desses sentimentos mude de ideia, frequentemente negando – até para si mesmo – que deseja mais do que só a amizade.

Para essa pessoa, existe uma expectativa de que eventualmente seus sentimentos sejam retribuídos, de que suas demonstrações de carinho e afeto e da qualidade potencial de uma relação sejam o bastante para conquistar o alvo desses sentimentos.

O resultado é, quase sempre, frustração. Ao declarar que você está disposto a lidar com a relação apenas como uma amizade mas manter-se esperando por algo mais, você faz com que o alvo desses sentimentos o trate exatamente como você concordou em ser tratado: Como um amigo. As expectativas, então, são contrariadas e a pessoa se frustra.

Da perspectiva de quem está fora dela

Do lado do alvo desses sentimentos, frequentemente garotas adolescentes, a situação tem uma cara diferente. A pessoa quer uma amizade platônica e não espera nem deseja mais do que isso.

Estar perto de alguém apaixonado por você e manter essa amizade pode ser causa de um sofrimento diferente. Enquanto a pessoa na friendzone tem seus sentimentos ignorados, gerando frustração, a outra pessoa pode se ver responsável pela maneira como o primeiro se sente. É uma pressão pela qual a pessoa não pediu, e ela não quer perder uma amizade que, fora esse detalhe, é adequada.

Ela também não quer diretamente negar os sentimentos do outro, especialmente quando esse outro diz que quer apenas uma amizade, afinal, não é apenas quem tem sentimentos românticos que não quer passar uma imagem negativa e recusar os sentimentos de alguém que está dizendo com todas as palavras que não é esse o caso. Isso pode fazer com que a pessoa pareça prepotente ou que esteja assumindo coisas. Ninguém, especialmente um(a) adolescente, quer ter essa imagem.

Confronto de expectativas

No fim, a Friendzone nada mais é do que o resultado de uma dificuldade comunicativa. Uma das partes tem desejos, sentimentos e esforços não correspondidos, além de receio de assumir esses sentimentos pelo medo da rejeição direta e de perder o contato com alguém importante para si.

A outra parte é capaz de corresponder apenas aos sentimentos de amizade e tem receio de machucar o emocional de seu amigo, de perder uma amizade agradável e de estar errada sobre as impressões que tem.

As diferenças entre essas expectativas para o relacionamento e a dificuldade de comunicar com clareza quais são essas expectativas – seja de maneira proposital ou não, seja com ciência desses desejos ou não – criam frustração em ambas as partes.

Blaidd e Ranni

Agora que já sabemos um pouco mais sobre o que é a friendzone, vamos falar sobre o tópico principal? Blaidd e Ranni, dois personagens chave em Elden Ring!

Elden Ring

Elden Ring é um jogo de ação da FromSoftware, um soulslike. Preciso mesmo apresentar? É um dos mais aclamados jogos dos últimos anos e um dos meus jogos favoritos. Tenho 200 horas nele e isso é bem pouco perto de muitos jogadores que já passaram milhares de horas nas Lands Between.

(Soulslike te interessam? A blackhat tem um episódio do podcast Overview sobre eles! Clique aqui para ouvir!)

O objetivo desse texto não é falar de maneira aprofundada sobre o jogo inteiro. Para todos os efeitos, basta falarmos que a Rainha Marika, uma Empyrean (uma raça com potencial divino), com o poder do Anel Prístino e de seu primeiro consorte, reinava suprema pelas Terras Médias. Um mundo do qual ela removeu a morte. A Rainha Marika seguia a Vontade Maior, comunicada por deuses externos como o próprio Anel Prístino.

Marika teve três filhos com o Primeiro Lorde Prístino, todos os três semideuses, então se uniu ao Segundo Lorde Prístino, Radagon, com quem teve mais dois filhos.

Estes dois também eram Empyreans, podendo suceder Marika em seu trono. Além deles, uma filha anterior de Radagon, Ranni, também era uma Empyrean. Ela e seus irmãos foram criados por Marika e elevados ao status de semideuses para poderem suceder a deusa.

Ranni, entretanto, não tinha desejo em seguir o destino colocado à sua frente por Marika e pela Vontade Maior, e estava disposta a sacrificar tudo para escapar disso. Ela queria tomar suas próprias escolhas, então roubou um pedaço da runa da morte, que Marika havia escondido do mundo. Com a runa, ela forjou armas capazes de matar deuses.

Usando disso, Ranni matou o próprio corpo, separando sua alma de sua carne Empyrean e colocando-se em uma boneca.

Marika, enlouquecida (por vários motivos, entre eles a morte de seu primeiro filho por conta das ações de Ranni) quebrou o Anel Prístino em várias partes e, por isso, foi aprisionada pelo Deus Externo que o controlava.

Várias guerras foram travadas pelos semideuses para tentar tomar o controle das Terras Médias, e é aqui que o jogador entra, guiado pela Vontade Maior para tomar o Anel Prístino, reforjando-o, tornando-se o terceiro Lorde Prístino… Caso queira.

Qual é a da Ranni?

Há seis finais separados para o jogo, três dos quais envolvem reforjar o Anel Prístino e recolocar Marika no poder, dois dos quais não vou dar spoiler, e um bem importante para esse texto. O final de Ranni.

Ranni nunca quis seguir o destino traçado para ela. Ela queria fazer suas próprias escolhas e chegou ao ponto de matar sua própria carne para tentar fugir dos desejos da Vontade Maior para ela, o que não bastou, e ela precisa da ajuda do jogador para conseguir seu final ideal, The Age of Stars, que envolve assumir o lugar de Marika e levar o mundo para uma direção diferente, de escolha dela mesma.

Entretanto, como semideusa e potencial sucessora de Marika, ela tem a companhia dos Two Fingers, ou “Dois Dedos”. Os Two Fingers são uma manifestação da Vontade Maior de deuses externos em forma física e podem ser interpretados como o destino dos semideuses.

Os Two Fingers de Ranni, assim como os de todos os outros Empyreans, dão a eles Sombras, protetores especiais que são incapazes de traí-los, possuindo lealdade eterna, com uma única exceção. Caso o Empyrean vá contra a vontade dos Two Fingers, a Sombra enlouquece e se torna agressiva. Há apenas duas Sombras que aparecem no jogo: Maliketh, a Sombra de Marika, e Blaidd, a Sombra de Ranni.

É sobre Blaidd que vamos falar hoje.

Como Blaidd se relaciona com Ranni?

Blaidd é um meio-lobo com lealdade tanto emocional como mágica para com Ranni. Não está claro se ele foi criado pelos Two Fingers ou se foi escolhido para a posição de Sombra, mas sabe-se que ele cresceu com Ranni como um meio-irmão e que é extremamente leal a ela, não apenas pela vontade dos Two Fingers, mas por sua própria vontade também.

Sua lealdade canina é forte o bastante para que, mesmo depois de ela ir contra a Vontade Maior, ele não enlouqueça e a ataque. Ele mantém-se leal à Ranni em seu corpo de boneca e a ajuda em sua missão. Ela deseja matar os próprios Two Fingers e escapar de sua vontade.

A relação deles tem expectativas diferentes. Blaidd, como uma Sombra, a protege e acompanha, mas ele tem a vontade dos Two Fingers de Ranni para cumprir.

Ranni deseja ir contra essa vontade, tornando-se livre da influência dos Two Fingers para fazer o que deseja.

O desejo de Ranni vai em direção oposta à lealdade imortal de Blaidd. Mesmo assim, ele entrega toda sua existência a ela, até mesmo contrariando o principal motivo de sua existência, a Vontade Maior, para ficar ao lado de Ranni.

Para chegar ao final de Ranni, você deve ajudá-la a matar seus Two Fingers, encontrando para ela uma arma capaz de fazê-lo. Depois de concluída essa missão, ela desaparece e só pode ser encontrada em uma igreja no Platô da Luz da Lua, um lugar que só pode ser acessado no fim da missão.

Lá, você encontra a boneca que o espírito de Ranni ocupava, imóvel, e seus Two Fingers fatiados, mortos. Ela derrotou seu destino.

Se você tiver recuperado um anel específico, você pode colocá-lo no dedo da boneca, que retorna a vida e o declara como seu Lorde. Um belo casamento em frente ao cadáver do destino dela.

Depois da conclusão da missão de Ranni, você pode visitar a torre dela em outra região – na frente dela você encontra Blaidd.

A maldição finalmente tomou conta dele. Ainda sofrendo por conta de sua lealdade e amor por Ranni, ele ataca qualquer coisa que chegar perto e você precisa matá-lo.

Blaidd no mundo real

Nada nas histórias contadas em jogos da FromSoftware é entregue de bandeja e conseguir detalhes sobre a lore é tão ou mais difícil do que derrotar os bosses em combate. Tudo fica escondido em descrições de itens, diálogos opcionais e detalhes discretos – e as informações nunca são completas. A interpretação é sempre muito aberta e não dá pra ter certeza de nada.

Entretanto, vejo a relação de Blaidd com Ranni como algo extremamente análogo à Friendzone. A imagem que Blaidd tem de sua própria lealdade como um algo de pureza incrível; a expectativa que ele tem de seguir para sempre com ela apesar de ela claramente ter desejos opostos, mesmo que o ame de uma maneira diferente; os sacrifícios não-solicitados que ele faz; o sofrimento terrível pelo qual ele passa para enfrentar parte de seus sentimentos – mesmo que na narrativa eles tenham uma atribuição externa – para manter a relação como está.

A própria aparência de Blaidd, como um lobo leal, como um cavaleiro jurado para sua princesa, resgata essa imagem de lealdade pura, divina, de amor caninamente incondicional. Mas não é verdade. No fundo, existem condições. Existem expectativas. E por fim, Blaidd carrega esse fardo até as consequências mais extremas.

Por fim, ele fica violento.

A violência

A rejeição não é um sentimento fácil, nem um pouco. A adolescência é uma fase da vida em que temos pavor dela, mas esse não é um medo sem motivo. Rejeição dói. Conter essa dor, esses sentimentos, mantê-los escondidos ao invés de lidar com eles é receita para frustração.

E a frustração, se ignorada, se torna raiva.

Você já ouviu falar de Incels?

“Incel” é a união das palavras “Involuntary Celibate”, em inglês, “Celibato involuntário”. É uma palavra que durante a última década ganhou relevância quando grupos na internet, majoritariamente compostos por homens que se sentem rejeitados, começaram a se descrever assim atribuindo a isso certas características de si. Em resumo, gente que não consegue ter relações sexuais mesmo desejando isso. Eles querem, mas não conseguem.

São pessoas que se reuniram para vocalizar suas frustrações com relacionamentos. Todo Incel passou por uma – ou mais – fase de friendzone. O problema é que essa vocalização da frustração se dá de maneira a alimentá-la. Ao invés de reconhecer que suas expectativas não eram adequadas à relação, que não souberam lidar com seus próprios sentimentos e intenções, eles jogam culpa. O celibato involuntário, para eles (e que fique clara a ênfase aqui), é causado por outra pessoa.

Para eles, isso é causado pelas mulheres que não cumpriram com as expectativas de relacionamento que eles tinham. Atribuem a si inúmeros defeitos que, novamente para eles, justificam com injustiça a rejeição. Sua altura, estrutura óssea do rosto, raça, gosto musical, escolha de hobbies, QI, biotipo, até a grossura dos pulsos (sério), basicamente qualquer coisa que eles mesmos enxerguem como defeito pode ser usada como motivo para a rejeição sem considerar que atração se baseia em um conjunto de coisas subjetivas extremamente variadas.

Incels têm a tendência de olhar para todo o sacrifício que sentem que fizeram por aquelas relações como se fosse uma coisa injusta, como se merecessem recompensas por tê-lo feito, e sentem que foram rejeitados por coisas fora de seu controle. Mesmo que esse sacrifício não tenha sido solicitado, mesmo que ele nem mesmo tenha sido comunicado. Eles têm a expectativa de que relações são assim e que as mulheres por quem se apaixonaram tinham um papel a cumprir, papel que ignoraram.

A imagem que existe da friendzone, como um lugar em que uma pessoa da relação coloca a outra sem que ela faça essa escolha, é um precursor da ideologia Incel, e, da mesma forma, culpabiliza a pessoa que não cumpriu com as expectativas.

Incels e violência

As comunidades Incel possuem um problema sério de ciclo de catastrofização. Ansiedade e depressão levam as pessoas que participam delas a assumir o pior a partir de pequenos problemas. Por exemplo, um adolescente, ao ser rejeitado, pode sentir que é porque sua aparência não agrada o alvo de seus sentimentos, o que o leva a pensar que ele é feio, e que sua feiura repele as pessoas, e que essa repulsão fará com que ninguém goste dele, o que fará com que ele fique sozinho para sempre. Cada inferência aqui é um pequeno passo, mas existem grandes pulos de lógica e de emoção para chegar do primeiro ao último, e as comunidades incel são cheias disso.

Pior do que isso, em sua dor, eles confirmam uns aos outros que estão certos, afundando cada vez mais nesse buraco de auto depreciação e frustração que, eventualmente, se torna raiva pela injustiça que sentem. Em um buraco tão fundo de desesperança e frustração, alguns podem pensar em vingança.

Existem Incels famosos por sua violência. Não vou linkar nenhuma das histórias aqui porque não há necessidade de publicizar essas questões dessa maneira, mas um dos mais famosos exemplos é o de Eliot Rodger que em 2014 matou 6 pessoas com uma faca e uma arma e depois se matou. Ele deixou para trás um manifesto e um vídeo declarando que estava levando a vingança para as mulheres que o injustiçaram e o trocaram por homens de maior “valor” do que ele, em sua própria visão.

Blaidd, declaradamente, não deseja mal à Ranni, mesmo em sua loucura. Entretanto, isso não o impede de nos atacar – o novo marido dela, por coincidência – e ele certamente atacaria a sua princesa também. Enquanto as motivações de Blaidd para a violência são externas, na vida real não existem Two Fingers.

As emoções que Blaidd continha dentro de si o levaram à violência descontrolada.

Relacionamentos e guerra

Para esse texto, quis fazer algo aprofundado. Enquanto a interpretação de Blaidd como alguém adepto a ideologia Incel, no geral, foi algo que me pareceu óbvio de cara, quis ir atrás de informações sólidas para entender melhor a maneira como essa interpretação pode ser apoiada.

Daniel Fauth Martins é psicólogo, psicanalista, Doutorando em Psicologia e pesquisador de Masculinidades (você pode achar o Instagram dele clicando aqui!). Ele, que também trabalha em grupos de responsabilização para autores de violência, me deu uma entrevista sobre masculinidade.

De acordo com ele, muito do que vemos em Blaidd não é uma questão exclusiva de grupos que levam essas visões ao extremo, mas algo com raízes na própria maneira como enxergamos relacionamentos entre homens e mulheres.

Fauth afirma que no geral enxergamos a posição masculina em um relacionamento de maneira bélica. “Eu diria que existe um discurso – e quando digo discurso é no sentido de uma forma de estruturar certa realidade – em relação a o que é o lugar de um homem num relacionamento, e se formos analisar a sistemática dele, é uma sistemática de guerra. Duas palavras são importantes aqui: Conquista e assédio. Assédio é um termo militar, tem a ver com cerco. E esse discurso atravessa em maior ou menor grau a constituição de masculinidades de uma maneira geral. A ideia de vencer”, aponta ele.

A conquista e a defesa

Fauth ainda diz que a expectativa geral que temos de um homem em um relacionamento tende a ser de protetor da mulher contra outros homens. Essa mulher passa a ser vista então como território que, depois de ser conquistado, deve ser defendido. Em alguns níveis, isso aparece em homens que não querem que suas parceiras usem roupas expositivas, que não tenham amigos ou interajam com homens (Jonah Hill manda lembranças), em outros níveis isso aparece na maneira frequente em que um homem que diz que a sua primeira reação caso sua filha sofresse um abuso seria matar o abusador ao invés de conversar, ouvir e acolher a vítima.

Isso aparece desde os primeiros momentos de um relacionamento, com a conquista. A insistência, o cerco. “Não é que não possa ter uma dinâmica de tentar ganhar o afeto de uma pessoa, mas frequentemente isso vem com táticas de guerra. É como se o homem tratasse a conquista como ‘cercar aquilo que é meu’”, aponta Fauth.

Em situações mais parecidas com a de Blaidd e das pessoas que se enxergam como vítimas da friendzone, isso pode aparecer como uma recusa da derrota.

A recusa da derrota e o assédio

Em uma guerra, a derrota tem a tendência de significar a morte. Não há a opção de aceitar a derrota. Se alguém enxerga relacionamentos dessa forma, recusar perder é o único caminho. Homens têm dificuldade de aceitar a recusa de relacionamentos. Daí nasce grande parte do assédio. Fauth aponta que a maior parte dos casos de violência física de homens contra mulheres é contra ex-companheiras, porque existe uma recusa em aceitar a negativa. É como se eles dissessem “eu não vou perder, eu vou atrás” ao invés de admitir que não deu certo, viver esse luto e seguir em frente. “O sujeito sente que perdeu o lugar no mundo e fica desamparado”. E é exatamente o que acontece com Blaidd.

Blaidd tem um lugar no mundo, dado pela divindade dos Two Fingers, e quando Ranni alcança seu desejo, que é ficar livre da Vontade Maior, Blaidd perde esse lugar. Para ele, é como se ele tivesse perdido por completo seu propósito de existência e ele não tivesse mais pelo que viver.

Mas enquanto para Blaidd isso é tecnicamente verdade, na vida real não existem Sombras ou Empyreans. Existem pessoas que tratam relacionamentos da mesma forma que Blaidd trata sua relação com Ranni e, no fim, levam a questão aos mesmos extremos, na sensação de que sua existência depende de seu papel masculino de protetor e da existência de alguém para fazer o papel da mulher a ser protegida.

O medo e o desamparo

Fauth diz que as principais emoções que ele vê nos homens com quem trabalha em grupos de responsabilização para autores de violência são o medo e o desamparo. O medo desse tipo de derrota, de não ter um lugar no mundo, por sentir que não conseguem cumprir as expectativas de masculinidade que existem. Frente a essas emoções, muitos homens encontram alívio em comunidades dispostas a abraçá-los e ampará-los, mas que alimentam essas expectativas ao invés de ajudá-los a processar de maneira saudável o que eles estão sentindo. “A forma como o sujeito cria o amparo para si mesmo pode ir por uma via de elaborar em si mesmo, de construir relações, de lidar com a falta e o desamparo, mas também pode passar por um lugar de tampar isso com uma ideia de potência. O ‘Eu sou, eu consigo, eu faço’, um discurso muito presente em comunidades incel/red pill”, conclui Fauth.

Essas comunidades têm o problema de alimentar o que Michael Kimmel, autor de Healing from hate: How young men get into – and out of – violent extremism (Em tradução livre, “Curando-se do ódio: Como homens jovens entram – e saem – do extremismo violento”), descreve como “aggrieved entitlement”, que pode ser livremente traduzido para “mérito ressentido”.

O homem sente que merecia um tipo de tratamento da mulher por ter cumprido com certas expectativas próprias de como tratá-la e, ao receber a recusa – desconsiderando que a pessoa pode simplesmente não querer certo tipo de relação por inúmeros motivos subjetivos –, cria ressentimento. Ao invés de tratar a recusa com “Eu queria e fiz tudo o que podia, que triste” e lidar com o luto, a reação é “Eu fiz tudo por ela, como que ela vai dizer não para mim?”, com raiva e ressentimento. É aí que a dinâmica se torna perigosa. A expectativa de potência masculina frustrada pela vida real tem o potencial de se tornar violência, assim como acontece com Blaidd em Elden Ring.

Crítica, apoio ou retrato?

A FromSoftware tem histórias muito abertas à interpretação. É difícil dizer se o que vemos é uma crítica à maneira de Blaidd ver o mundo, se existe juízo de valor na maneira de Ranni lidar com seu destino ou se existe apenas um retrato ali. É difícil até mesmo ter certeza se essa retratação e paralelo que enxerguei com tanta clareza foi proposital (apesar de achar que a maneira como Iji descreve Blaidd como “se tornando como um irmão” para Ranni é uma referência direta à friendzone).

Entretanto, podemos ver que a história de Blaidd é muito trágica, no fim. Uma vida entregue de bom grado à vontade dos Two Fingers, com expectativas diretamente opostas à de sua protegida, resultando em frustração pelo resultado e violência direta para com o novo consorte dela, o jogador, que é potencialmente um grande amigo, e que é quem acaba com essa vida de servitude.

Suas escolhas o levaram até ali; Muito da lealdade dele não vem diretamente dos Two Fingers, mas sim da maneira canina com que ele vê e trata relações em geral – afinal, ele é um lobo. Mas no caso dele, existe uma força maior que o empurra para esse lado, a própria Vontade Maior, o que não é tão diferente assim das comunidades que forçam e incentivam maneiras extremamente problemáticas de enxergar o mundo e relações.

No fim, podemos enxergar Blaidd como desejarmos, essa é a natureza da interpretação de narrativas. E a maneira como vejo é uma história muito trágica, compartilhada por inúmeras pessoas do mundo real que, diferente de Blaidd, têm uma escolha de verdade e não precisam seguir o mesmo caminho.

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